quinta-feira, outubro 06, 2005

Conto

Ontem estive aqui, sentado nesta mesma mesa.
Estive a escrever e no fim, acabei por assistir também a um espectáculo bastante bom.
Eram duas.
Uma italiana. Uma portuguesa.
Alice Ruhrwacear e Susana Reis.

Ambas cantavam, ambas tocavam acordeão.
E contaram uma história.
Uma história que não resisto em partilhar com vocês.
Claro. Não vou cantar nem tocar acordeão.
Vou apenas contar a história tal e qual me lembra.
Quase de certeza vou acrescentar um ponto. Não seria um contador se o não fizesse.

“Era uma terra branca, fria, feita de gelo. Essa terra branca tinha linhas pretas.
Essas linhas pretas não eram mais do que o mar.
Estamos no Alasca. Há muito anos atrás.

A lua estava cheia. Por isso a terra era tão branca. O gelo tão brilhante. E o mar tão negro.
Numa dessas linhas pretas vai um barco.
No barco vai um homem.
O homem navega. Sem rumo. Procurando.
Procurando não se sabe bem o que.
Ao longe, mesmo no meio da linha preta, destaca-se um ponto branco.
O ponto branco vai-se transformando numa ilha de gelo.
Na ilha de gelo estão pessoas a dançar.
As pessoas são apenas mulheres.
As mulheres dançam… nuas.

Segundo dizem as lendas, as focas são mulheres disfarçadas. Que se fartaram dos homens e foram viver para o mar.

O homem fica sem saber o que fazer.
Aproximo-me? Afasto-me? Paro?
As mulheres dançam. Parecem convida-lo a aproximar-se.
Ele aproxima-se…
Repara que na ilha existem pequenos pacotes. Esses pacotes são as pelas que as mulheres vestem para serem focas.
As mulheres reparam no homem.
Gritam! E muito rapidamente, correm a vestir as peles para mergulharem no mar.
Todas. Todas menos uma.
Uma ainda anda de um lado para o outro a procura da sua pele.
A pele não esta em lado nenhum.
As outras focas chamam-na.
Ela pensa: “a pele não esta aqui. As minhas irmãs não a tiraram. Só pode ter sido o homem.”
Então a mulher nua, coloca as mãos na cintura, e olhado para o homem, diz com voz zangada: “Dá-me a minha pele!”
Do homem não sai resposta.
O homem já não falava com ninguém a demasiado tempo.
Ainda lhe custa fazer sons.
Articular palavras.
E o que dizer?
Ele já não se lembra o que se deve dizer. Muito menos a uma mulher. “O que se diz a uma mulher?”
“Fica comigo!” Ouve-se o homem pedir.
“Fica comigo 7 anos. No fim desses devolvo-te a pele!”
A mulher olha para o homem.
Um homem e uma mulher. À luz da lua cheia, no cimo de um ponto branco, no meio de uma linha preta.
E a mulher aceita.
Partem os dois.
Constroem um pequeno iglô.
E o tempo passa.
Um homem… Uma mulher… Sozinhos num iglô…
Nasce uma criança.
Chamam-na de ORUK.
Eu não sei, mas há quem diga que Oruk é o som que o vento faz sobre o gelo… Oruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuukkkkk………..
E a criança cresce. Um pouquinho cada dia. Como qualquer um de nós.
Passam 2 anos…
Passam 3…
A criança começa a aprender.
Do pai, durante o dia, aprende as coisas práticas, concretas. “Um buraco no gelo corta-se assim” ensina-lhe. “Isto é um barco!” “O anzol prende-se desta maneira!”
Aprende o dia-a-dia. Aprender que dois mais dois é igual a quatro.
De noite, com a mãe, aprende a alma das coisas.
A mãe conta-lhe que na terra dela há milhares de peixes diferentes. Existe o plâncton. Existem peixes que mudam de cor. Existem até peixes tão grandes, tão grandes, tão grandes, que o pequeno iglô deles é apenas o tamanho de 2 dentes. Esses peixes chamam-se baleias.
E a mãe conta-lhe histórias das suas tias. Sim a mãe tem um clã, um grupo. Ele tem milhares de tias que nunca conheceu.
E os anos continuam a passar.
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E Oruk continua a crescer.
A ser educado de dia pelo pai e de noite pela mãe.
No entanto, a relação entre os pais é complexa.
Discutem por diversas coisas.
“Meu filho, aquela constelação que ali vês é o pescador”
“Não senhor, isso é errado” Diz a mãe “Essa constelação é a baleia”
“Não é nada” Responde o pai. “Essa é o pescador, e a verdade é essa”
“Não, essa é a baleia, aquela ali é a foca menor, logo ao lado esta a foca maior, e na sua cauda, esta a estrela-do-mar.”
E por isto e muitas outras coisas os pais discutem e nunca chegam a uma conclusão.
E o tempo passa.
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10 anos.
E o homem não devolve a pele a mãe.
Pensa para com os seus botões: “Para que vou eu devolver a pele? Ela agora tem responsabilidades. Tem o filho para criar. Tem as tarefas da casa para fazer. Ela agora não pode, nem quer, ir embora!”
Por seu lado a mulher não pede a pele. Pensa: “Ele nunca me irá dar a pele. Tem o Oruk e não o quer deixar sem mãe. Tenho sempre a comida pronta e a casa arrumada. Ele nunca me deixará ir embora!”
E Oruk vê a mãe cada vez mais magra.
Sentada a beira-mar, embrulhada no xaile. Com a eterna lágrima de saudade a escorrer pelo rosto.
A pele seca.
Cada dia que passava mais fraca ficava.
Mas não conseguia pedir a pele ao homem.
Oruk acorda com um grito!
Era a sua mãe.
Oruk ouve o vento chama-lo…
Oruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuukkkkk………..
Sai a correr atrás do chamamento.
Corre.
Corre.
Corre.

Cai!

Ao levantar-se começa a observar o local onde caiu.
Encontra um pacote. Bem apertado, cheio de cordel.
Abre-o.
E, a medida que as pontas se vão desenrolando nos seus pequenos dedos, sente o cheiro de sua mãe.
Rapidamente Oruk percebe que aquilo é o motivo da tristeza da sua mãe.
Sai a correr em direcção a sua mãe. Com o embrulho debaixo dos braços.
Encontra-a a beira-mar.
E, sem dizer uma palavra, estende-lhe o embrulho.
A mãe, com a cara de espanto, recebe o embrulho. Olha para o filho! Desenrola a pele. Olha para o filho. Lentamente veste a pele. E, respira para cima de Oruk sete vezes.
E vão os dois para o mar.
Oruk, graças à mãe, conseguirá ficar sete dias debaixo do mar.
Nadam. Oruk conhece finalmente as suas tias… Têm tantas… Fala com cada uma delas, nada com elas. Conhece o clã.
Vê os peixes de mil cores. Saboreia o plâncton. “É doce.”
Vê as baleias passarem.
E então Oruk conhece algo novo.
Algo que o envolve. Algo que se ouve e se sente fisicamente.
Oruk conheceu um som diferente. Novo.
Era como receber um abraço. Oruk já não se lembrava, mas jurava que era quase como voltar ao ventre materno.
Mas os sete dias chegam ao fim. E Oruk volta para terra. A mãe vai leva-lo. As tias acompanham-no.
Chegando a margem. A mãe rasga um pedaço, estende-o a Oruk, beija-o na testa e volta a mergulhar para junto das irmãs. Partem.
Oruk pega então no pedaço de pele que sua mãe lhe ofereceu. Dirige-se ao Iglô.
E com aquele pedaço, constrói o primeiro instrumento do mundo.
O TAMBOR!
Então, Oruk parte!
Dá a volta ao mundo, para que toda a gente conheça o som do mar. Aquele som que abraça e acaricia…”

Isto é o que me lembro da história que ouvi. Se esta tal e qual não sei dizer. Mas aconselho a quem poder que ouça como eu ouvi.

Programação - Música - Itália Vs. Portugal


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